(Eu vou focar aqui em questões xenogênero, mas diversas microcomunidades enfrentam problemas similares.)
Quando mencionam a existência de identidades xenogênero, é comum que a reação seja basicamente concern trolling:
- "Na verdade, acho que essas identidades são só isca de fascista pra desmoralizar a comunidade, e você está caindo nelas."
- "Isso é só confusão entre identidade de gênero e gostos/personalidade/modo de se vestir, pessoas não-cis de verdade não se identificariam assim."
- "Essas identidades só confundem as pessoas sobre o movimento; mesmo que sejam reais, é melhor que as pessoas só se digam não-binárias se querem ser levadas a sério."
Confesso que digitar essas coisas me dá tanto nojo quanto digitar argumentos anti-gays ou anti-trans espalhados por qualquer reaça.
E isso não é só porque eu sou pessoalmente afetade por eles, mas também porque silenciam um grupo diverso de pessoas. Essa retórica faz com que um tipo de diversidade interessante e pouco explorada, que deveria ter chance de ter uma voz e de falar de suas experiências, fique isolado em uns cantos em um estado contínuo de ter que suspeitar de qualquer negatividade e de qualquer pessoa que não faça parte desses círculos.
Não dá pra confiar em ninguém
Haviam dois grandes blogs LGBTQIAPN+ dedicados a falar sobre termos para identidades que eram populares. Um deles foi hackeado e deletado, e o outro teve infiltração de alguém com más intenções que resolveu resetar o blog para "não ser mais homomísico" (e começou a usar retórica de feministas radicais e a deixar de validar identidades não-hétero ou não-cis que não eram aprovadas pelo seu novo público monossexista e reducionista de gênero).
Originalmente, os dois blogs tinham certo cuidado com criticar identidades problemáticas e com tentar não aceitar identidades de trolls (a não ser que alguém quisesse ressignificá-las).
Depois disso, o próximo blog que ficou popular não quis ter esses cuidados. É um blog que cataloga qualquer tipo de identidade e que aceita qualquer tipo de envio de termo, sem julgamentos.
Isso criou uma ruptura. Algumas pessoas que aceitavam microcomunidades antes agora começaram a associá-las com a aceitação de termos trolls e problemáticos. Outras pessoas defenderam o blog e foram incentivadas por ele a cunharem identidades menos aceitáveis ainda (mesmo que a maioria não seja necessariamente problemática). Outras se afastaram de ambos estes grupos, aceitando microcomunidades mas tentando manter discernimento.
Independentemente do quanto este blog específico teve influência nisso, a ausência de blogs populares que poderiam ser apontados como recursos bons e a onda de ódio contra microcomunidades fez com que muitas pessoas deixassem de se identificar de forma tão livre em seus perfis pessoais, para evitar serem julgadas por isso.
Enquanto pessoas "ex-xenogênero" (assim como pessoas "ex-assexuais", "ex-MOGAI", entre outras) se sentiram livres para falar de seus relatos de como a liberdade de poder escolher entre identidades demais fez com que elas tivessem escolhido identidades de gênero específicas demais, sendo que depois perceberam que essas identidades eram "inúteis"/"pouco materiais"/"inexistentes"/erradas, pessoas xenogênero no máximo fazem postagens tentando justificar o motivo de xenogêneros existirem, em contas geralmente anônimas para esquivar do ódio inevitável.
Ou seja, temos poucas postagens pessoais de pessoas descrevendo como é ser xenogênero, porque depois de um certo ponto, valia mais a pena calar a boca sobre isso, ou fazer um blog novo pra falar sobre essas coisas mas sem dar informações que poderiam identificar a pessoa em outro lugar.
Isso acaba incentivando a comunidade a ficar no Tumblr e no Discord. No Tumblr, é fácil fazer um blog novo "anônimo", e mandar perguntas anônimas, e já ter contato com a comunidade. Discord também não revela seu endereço de e-mail ou qualquer coisa pra ninguém, então é só fazer um formulário de inscrição para o servidor e pronto! Mais um lugar para fazer amizades.
Mas isso tem consequências:
- Não é possível apontar uma comunidade que tenha nomes e rostos, porque até seu blog preferido pode sumir do nada sem deixar contato;
- Como coloquei acima, relatos pessoais são poucos, e a maior produção da comunidade acaba sendo bandeiras e termos, independentemente de serem coisas com as quais quem as cunha se identifica ou de serem só uma ideia que alguém teve;
- A comunidade não consegue se expandir para lugares que requerem identidades mais fixas e/ou sem uma microcomunidade já estabelecida, porque mesmo espaços não-binários gerais podem reagir com ódio e intolerância.
O ciclo
Com a comunidade isolada, anônima e cansada de ter que se defender, é fácil que trolls realmente finjam ser parte dela.
E é provável que ninguém realmente da comunidade queira tentar ser um exemplo positivo e se expor à intolerância e ignorância, depois do dano ter sido feito.
Isso perpetua a ideia de que todo mundo que se identifica com "termos estranhos" seja troll.
E daí pessoas xenogênero não se sentem seguras em sair do seu canto ou em falar de suas experiências.
Ainda mais quando é fácil achar ódio: é só procurar por termos xenogênero em redes sociais. Stargender. Gendercute. Caelgender. Colorgender. Arithmagender. Cadensgender As vozes defendendo estas identidades ou se identificando com elas vão ser anônimas, enquanto quem faz chacota ou discurso de ódio não tem porque se esconder: sua opinião está dentro da norma.
Assim também é difícil se descobrir xenogênero, ou pensar nessa possibilidade. Quase todo o conteúdo sobre essas identidades é negativo. O pouco conteúdo positivo ainda geralmente é envolto de chacota, intolerância e críticas. E isso impede a comunidade de crescer e se diversificar.
Pode ser mais fácil ignorar essa identificação, ou reduzir a identidade a algo mais aceitável. Ser gênero-fluido ou demimenino ou pessoa não-binária transfeminina já é difícil, pra quê complicar?
Daí, se alguém aparece pra defender, dá pra usar o seguinte argumento: ninguém que se identificaria com isso de verdade teria coragem de admitir, e, portanto, quem usa ou defende estes termos é troll e não merece reconhecimento na comunidade.
O ciclo precisa ser quebrado.
Como quebrar o ciclo?
Histórias xenogênero precisam ser contadas e espalhadas, caso venham de fontes confiáveis.
Ambientes trans e não-binários precisam ser mais positivos para pessoas xenogênero. Façam postagens de positividade e de informação sobre identidades xenogênero, não só sobre identidades trans e não-binárias "mais fáceis de aceitar".
Menos críticas e ceticismo, mesmo que "bem intencionado", por favor. Já temos o suficiente.
A inclusão precisa ser feita com respeito. Não adianta chegar em uma comunidade não-binária e perguntar se alguém ali é gênero-fofo e poderia responder umas perguntas.
Se você é ou convive com pessoas xenogênero, tente (se) perguntar sobre a possibilidade de comunidades/grupos/blogs fora do Tumblr e de chats.
Se você escreve contos ou poemas, faz jogos, etc., tente pesquisar o pouco que há sobre experiências xenogênero, e adicionar representação xenogênero na arte.
E a possibilidade de trolls?
Sempre vão haver trolls fingindo ser estereótipos.
Ao aceitar pessoas xenogênero, a efetividade de trolls vai ser menor; não vão conseguir dividir uma comunidade pela intolerância a algo novo.
Comunidades baseadas em identidades precisam aprender que a exclusão deve ser feita com base nas ações das pessoas, e não com base em usar "termos estranhos".
Aprender a considerar experiências diferentes das suas e acolher pessoas que precisam deveria valer o risco.
Ao excluir pessoas xenogênero, quem ganham são as pessoas que usam a tática da desinformação a favor de enfraquecer comunidades, colocando-as em alerta de uma ameaça que na verdade é um grupo que sofre com questões parecidas.
Ao gastar sua energia fazendo chacota de pessoas xenogênero e falando que são trolls e pessoas que caem em trollagem arruinando a comunidade, isso é mais energia gasta de pessoas que vão tentar discutir com você sobre isso. Inclusão radical faz com que toda esta energia possa ser usada para que a vida de todo mundo seja melhor, não só das pessoas mais próximas de serem levadas a sério.
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