Pensamentos sobre palavras, retóricas e intenção

Este texto irá conter exemplos de discriminação e de palavras estigmatizadas, além de discussões sobre o dano que palavras podem causar.

Sinto que este texto está meio embaralhado demais pra servir como uma boa referência, mas espero poder expressar a importância de tirar certos termos do vocabulário quando pessoas marginalizadas dizem que eles machucam ou contém estigma.

Tipos de termos problemáticos

Algumas vezes, certos termos por si só são ofensivos, mesmo que o contexto do termo não seja. Tais termos podem ser ofensivos por trazerem conotações históricas de xingamentos, estigmas ou categorizações errôneas, ou por terem se tornado formas negativas de se referir a algo através dos tempos e terem eventualmente deixado de ser categorizações.

Por exemplo, se alguém se refere a pessoas que sentem atração pelo mesmo gênero como “praticantes do homossexualismo”, mesmo que de forma positiva, ainda é possível que muita gente se sinta desconfortável.

Isso porque tal expressão dá a entender que orientações sexuais se referem apenas a práticas, faz referência ao uso da retórica de que heterodissidência é ou uma doença ou uma ideologia [1], e coloca todas as pessoas que sentem atração pelo mesmo gênero como “homossexuais”, uma palavra que não se encaixa para pessoas que sentem atração por mais de um gênero e nem para as pessoas que só se identificam como lésbicas ou gays.

Em casos como este, é possível apenas trocar o termo utilizado para evitar o desconforto alheio.

Outras vezes, os termos são apenas um bônus dentro de uma retórica discriminatória. As razões para tais termos serem ofensivos podem ser as mesmas dos termos acima, mas há o problema adicional do contexto no qual estão inseridos.

Por exemplo, o pai de uma criança não a deixa assistir certo programa de TV por “conter homossexualismo”. Neste caso, não importa se ele usasse palavras como “possui representação heterodissidente” ou “contém conteúdo LGBTQIAPN+” ou qualquer coisa do tipo; o problema é ele achar que isso de alguma forma é ruim para uma criança assistir.

De qualquer forma, existe também uma variação na intensidade do quanto cada termo é ofensivo. Ou seja, não é só porque um termo não é tão ruim quanto outro é que não é ofensivo.

Também existem termos que não vão ser ofensivos em determinadas situações, mas que vão ser em outras. Por exemplo, organismos assexuados (que não possuem diferenciação sexual dentro de sua espécie) existem, mas uma pessoa assexual não deve ser chamada de assexuada.

Sobre intenção

Algumas pessoas argumentariam que não há problema nenhum com o primeiro caso, só com o segundo.

O que eu digo em resposta é que o segundo caso é um problema pior do que o primeiro. Retórica sempre vai ser mais danosa do que o uso das “palavras erradas”. Porém, não acho que isso signifique que nenhum esforço pode ser feito para que palavras com conotações opressivas saiam do vocabulário.

Pessoas que passaram por situações de abuso, violência ou apagamento por conta de certas palavras podem não se sentir confortáveis com certos termos em nenhum contexto.

Pessoas que sabem que certos termos não deveriam ser usados podem não se sentir seguras entre quem “não se importa com o termo certo porque o importante é entender a mensagem”.

Pessoas que sabem das conotações negativas dos termos podem presumir que quem os usa não se importa em combater certo tipo de opressão/discriminação, ou até mesmo concorda com a conotação embutida no uso de tais termos.

Existe também a questão de palavras influenciarem que associações vão ser feitas com cada grupo. Por exemplo, o uso de palavras como homofobia, transfobia e xenofobia faz com que pessoas façam mais associações dessas discriminações com fobias que são neurodivergências, em comparação a discriminações como racismo e misoginia.

De qualquer forma, o uso de termos inadequados sempre lembra as pessoas que sabem que tais termos são inadequados de que certos tipos de opressão ainda são normalizados naquele espaço.

Sobre comunicação

Comunicação é um processo de troca de informações. Um lado precisa expressar algo que o outro lado vai entender.

Muitas vezes, comunicação não tem só a ver com a ideia do que está sendo dito. Uma série de sinais pode complementar a informação das palavras que estão sendo transmitidas. Muitas vezes, a expectativa de certos sinais pode arruinar a informação dada, ou fazer com que pessoas duvidem de sua veracidade, por mais que ela seja boa.

Isso pode afetar muita coisa, mas quero focar aqui em palavras. As palavras que alguém usa podem ser indicativas dos grupos sociais aonde a pessoa está inserida. Quando se trata de grupos marginalizados, é comum que pessoas que tenham mais contato com tais grupos saibam se referir a eles de forma menos ofensiva, enquanto pessoas sem contato nenhum podem nem saber que as palavras que usariam para se referirem a tais grupos são consideradas ofensivas ou inadequadas.

Quando uma pessoa usa “pessoas com probleminha” para se referir a pessoas neurodivergentes, isso dá a pessoas neurodivergentes um motivo para presumirem que esta pessoa possivelmente não as respeita como seres humanos. Talvez isso seja verdade, talvez não. Mas, justamente por capacitismo ser comum, se pessoas neurodivergentes quiserem se afastar e/ou não revelarem sua neurodivergência por essa pessoa, isso deve ser visto como um mecanismo de defesa, e não como “política da pureza” [2].

Sobre alcance

Quando alguém diz que certo termo é opressivo e não deve ser utilizado, o que a pessoa quer dizer é que, ou naquele contexto, ou em qualquer contexto, certo termo carrega um estigma relacionado a discriminação.

Para algumas pessoas, isso pode parecer valorização de linguagem politicamente correta acima da retórica. Porém, só porque certos atos discriminatórios são piores, não significa que outras coisas não contribuem com discriminação.

Quando é só a linguagem que está errada, é só isso que deveria melhorar.

Quando há mais coisas erradas, com certeza há mais coisas a criticar, mas isso não significa que nenhuma crítica pode ser feita à linguagem usada.

Às vezes, é mais fácil criticar palavras sendo usadas, porque geralmente não é necessária muita explicação ao redor disso.

Por exemplo, pode ser muito mais fácil escrever uma postagem dizendo “não usem [palavra] porque literalmente significa [coisa ruim associada a grupo marginalizado]” do que uma postagem que pede para que pessoas reflitam sobre hábitos mais profundos ou histórias sangrentas ou dados negativos de pesquisas.

Em boa parte dos casos, há menos necessidade de reflexão sobre mudanças no vocabulário do que sobre outras coisas, e há menos pesquisa envolvida em expressar o motivo de uma palavra ser ruim do que em expressar o motivo de outras coisas aparentemente inocentes serem ruins.

Porém, tem vezes que é muito difícil criticar palavras sendo usadas, porque tais palavras são consideradas presentes demais no vocabulário comum para mudar o hábito. Por exemplo, por mais que imbecil signifique “sem inteligência” ou “alguém com atraso mental”, é comum justificarem o uso da palavra dizendo que em “suas opiniões”, o termo só significa algo como ruim/chate/irritante.

É estressante o quanto é fácil ler e fazer postagens sobre o quanto certas palavras são ruins, só para ver pessoas defendendo arduamente o uso de palavras que poderiam ser substituídas com pouca dificuldade. E, sim, existem casos de pessoas que esquecem fácil de certas coisas ou que já possuem dificuldades em achar palavras, mas isso não se aplica na maior parte das defesas.

A eliminação de termos problemáticos por pessoas que podem escolher suas palavras com mais cuidado irá facilitar com que outras pessoas nem precisem refletir tanto sobre como vão substituir alguma palavra já “enraizada”.

Sobre a utilização das “palavras certas” enquanto discriminação é perpetuada

Tanto pessoas bem intencionadas que não entendem que o que estão fazendo quanto pessoas mal intencionadas que acham que podem falar o que quiser desde que usem as palavras certas podem disfarçar retórica opressiva com linguagem geralmente usada em espaços antiopressão. E isso é um problema.

Por exemplo, perguntar se certa pessoa não-binária foi designada como homem ou como mulher para assim categorizar tal pessoa em certos estereótipos ainda é cissexista, mesmo que uma pergunta como “você nasceu homem ou mulher” seja ainda mais cissexista.

A conscientização sobre assuntos de forma mais profunda do que termos usados é importante. É importantíssimo saber que a medição de inteligência é opressiva, que sexos não deveriam ser associados a gêneros, que normas de gênero são socialmente construídas e não precisam ser obedecidas por pessoas de qualquer identidade de gênero, que opressões não acabaram século passado, que colonialismo ainda afeta mesmo povos que supostamente ficaram independentes de seus respectivos países colonizadores, que qualquer pessoa merece acesso a ar, saúde, alimentação e moradia independentemente de seu emprego ou da sua capacidade de produzir, que o capitalismo é inerentemente opressivo, etc.

Quando alguém não sabe disso, não é culpa de pessoas que pedem para parar de usar certas palavras e que supostamente não vão além disso (geralmente esse tipo de ativista superficial nem existe). Isso é culpa de uma sociedade que incentiva a reprodução de uma série de ideias opressivas, o que inclui tanto a retórica discriminatória como a normalização de palavras estigmatizadas.

Sobre ressignificação

Ressignificação significa que alguém, ou um grupo, como parte de um grupo marginalizado afetado por uma palavra estigmatizada, usa aquele termo para se descrever de forma positiva.

Por exemplo, quando alguém com atração por mais de um gênero usa bissex para si, esta pessoa está usando um termo usado para descrever mídia pornográfica que contém uma pessoa transando com pessoas de dois outros gêneros ao mesmo tempo como uma parte de sua identidade, ao invés de como um termo que promove a fetichização de identidades multi.

Isso não significa que bissex seja um termo adequado para se referir a qualquer pessoa que não se identifique especificamente com este termo.

Isso também não significa que pessoas bi possam usar bissex como xingamento contra outras pessoas bi (por serem, por exemplo, não-monogâmicas). Isso não é uma ressignificação, isso é apenas contribuir com o significado original da palavra.

Alguns termos foram mais amplamente ressignificados, como gay. Hoje em dia, a maioria não vê gay como um xingamento que perpetua estigma contra pessoas heterodissidentes, apenas como uma identidade. (Ainda assim, é possível que o termo seja usado como xingamento, mas neste caso ele só tem a conotação de associar heterodissidência com algo ruim por conta do contexto.)

Portanto, é importante também ver o contexto onde a palavra estigmatizada está sendo usada antes de, por exemplo, acusar a pessoa de estar perpetuando discriminação. Mesmo assim, o fato de uma pessoa ser afetada por uma palavra não lhe dá o direito de xingar outras com ela e dizer que tudo bem ela usar a palavra porque “está ressignificando” (se está usando como algo negativo, não está).

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Notas

[1] O sufixo -ismo é associado com ideologias (como marxismo ou liberalismo). Além disso, o termo homossexualismo era usado em literatura médica para categorizar pessoas heterodissidentes (ou ao menos parte delas).

[2] O termo política da pureza é usado para criticar grupos que tentam excluir qualquer outro que não seja puro o suficiente. É um termo versátil que já foi usado em várias situações diferentes, mas é comum usá-lo para comunidades que se dizem progressivas que atacam qualquer pessoa ou coisa que não seja