Link para a postagem original, publicada em 22/10/2019
Ser uma pessoa não-binária só significa que a pessoa em algum momento percebeu que não se encaixa totalmente nem na identidade mulher e nem na identidade homem.
Com a relativa popularidade desta identidade sem que ela seja acompanhada pela presença de grupos não-binários bem informados, isso significa que até pessoas não-binárias que tentam informar sobre isso acabam tendo impressões equivocadas sobre vivências não-binárias. Aqui estão algumas que já encontrei.
1. A maioria das pessoas não-binárias sabe bastante sobre rótulos de identidades
Eu não diria que é o caso. Muita gente depende de pessoas ou sites com mais informações para descobrir a própria identidade, e não se aventura para muito além disso.
Se você não tem muita informação sobre estas coisas, você não está sozinhe.
2. Todas as pessoas não-binárias são pan
As orientações pan e poli são mais comuns entre pessoas trans, especialmente não-binárias, do que entre pessoas cis. (Fonte)
Mesmo assim, algumas pessoas parecem ter a impressão de que ser não-binárie significa não ver gêneros binários (ou gêneros em geral) como relevantes, e que isso significa que a pessoa não consegue ter mais atração por certos gêneros do que por outros.
Bem, para começar, existem pessoas que não sentem atração alguma. Sentir atração não deveria ser considerado algo padrão, e esse pensamento é alossexista (contra pessoas assexuais/arromânticas/sem atração de forma total ou parcial).
Daí tem a questão de que, enquanto existem pessoas não-binárias que não entendem gênero, ou que possuem sua identidade de gênero ligada à sua orientação (ou sua orientação ligada à sua identidade de gênero) de forma que não sentir atração alguma por ninguém ou sentir atração igual em relação a todes é uma conclusão lógica, muitas pessoas não-binárias não funcionam desta maneira.
Existem pessoas não-binárias com as mais diversas orientações multi. Existem pessoas não-binárias cuja atração é fluída, ou seja, muda de tempos em tempos. Existem pessoas não-binárias que não determinam como funciona sua atração. Existem pessoas não-binárias lésbicas e gays (porque pessoas não-binárias podem sentir conexão com algum gênero binário, ou sentir atração apenas pela própria identidade de gênero). Existem pessoas não-binárias que não sentem atração por mulheres e/ou por homens mas que ainda sentem por outro(s) gênero(s).
E existem pessoas não-binárias a-espectrais que usam só rótulos a-espectrais, ou que usam tais rótulos em conjunto com outros de tipos já citados.
3. Não existem orientações que contemplem pessoas não-binárias
Este mito ajuda a perpetuar o mito anterior, aliás.
Uma pequena lista de termos que contém tanto termos para pessoas não-binárias atraídas por outras pessoas quanto termos para pessoas binárias atraídas por pessoas não-binárias pode ser encontrada aqui.
Uma lista um pouco maior de termos que podem ser usados para quem sente atração por um gênero binário sendo uma pessoa não-binária, ou para quem sente atração por certo gênero e por (certas) pessoas não-binárias, pode ser encontrada na segunda metade deste texto.
Para quem não quer abrir outra página agora, meu ponto aqui é que existem sim diversos termos que não são considerados problemáticos para pessoas que são atraídas por um gênero binário + pessoas não-binárias ou para pessoas não-binárias atraídas somente por um gênero binário.
4. Não é possível viver abertamente como pessoa não-binária, é preciso escolher um gênero binário socialmente
Isso depende muito da situação de cada pessoa. Sim, talvez alguém precise dizer que é uma pessoa trans binária para que aceitem trocar nome social ou dar acesso a tratamento hormonal. Sim, talvez alguém precise fingir ser cis para não perder o emprego ou a família.
Também tem a questão de que legalmente, no Brasil, ainda não existe a possibilidade de mudar o sexo nos documentos para uma opção não-binária.
Mas não dá pra dizer que isso é algo universal ou prova de que viver socialmente como não-binárie é impossível. Existem cada vez mais pessoas se abrindo como não-binárias, e diversas pessoas abertamente não-binárias conseguem manter relacionamentos, contato com a família, emprego e outras coisas mais acessíveis a pessoas cis.
5. Pessoas não-binárias precisam escolher entre a/ela/a, o/ele/o, e a opção vista como linguagem neutra universal no momento (como e/elu/e ou x/elx/x)
Além de existirem pessoas que não usam nenhuma linguagem, ou que usam qualquer linguagem, ou que mudam de linguagem regularmente por conta de serem gênero-fluido ou similar, todas as outras possibilidades de linguagem merecem ser respeitadas.
Alguns dos vários exemplos de conjuntos de linguagem usados por pessoas não-binárias "de verdade" que diferem desses mais usados são ze/elz/e, -/éle/e, ê/ile/e, li/el/z, a/ila/a, -/elo/o, -/el/e, ae/elae/ae, a/eli/e e i/éli/i.
Para a maioria, se acostumar com qualquer linguagem além de o/ele/o e a/ela/a é uma dificuldade imensa. Então, pra quê forçar alguém a usar e/elu/e quando a pessoa não se sente representada pelo conjunto e quando tal conjunto nem vai ser respeitado mesmo?
E por que haveria a necessidade de forçar todas as pessoas que não se sentem confortáveis com os conjuntos a/ela/a e o/ele/o a usarem um único conjunto, quando pessoas não-binárias possuem identidades de gênero muito mais diversas do que pessoas binárias, que possuem conjuntos específicos associados a cada gênero?
Para mim, o conforto pessoal de cada pessoa com o seu conjunto vale mais do que uma padronização forçada que traria algumas facilidades. O conjunto de linguagem de ninguém deveria ser presumido e considerado óbvio, de qualquer maneira; nem de pessoas que "parecem homens" ou "parecem mulheres".
6. Está tudo bem chamar conjuntos de linguagem de femininos, masculinos ou neutros
Não. Não está.
Pessoas não precisam ser femininas para usar a/ela/a ou masculinas para usar o/ele/o. A maioria entende que não é legal ficar falando que pessoas são do sexo masculino ou feminino, e que isso reforça uma lógica cissexista e de padrões de gênero; não entendo como não conseguem aplicar a mesma lógica para linguagem.
E linguagem neutra vai significar coisas diferentes dependendo do ambiente. É bem melhor se referir ao conjunto em si, como ê/elu/e, x/elx/x, -/ile/e, -/-/- ou o que for.
Fora que nem toda a neolinguagem foi feita para ser neutra. Minha noiva usa o pronome ila por remeter ao pronome ela enquanto é algo fora do binário, por exemplo. E eu uso o pronome eld porque não quero algo que poderia ser neutro e servir para pessoas de linguagem indeterminada, e sim algo tão diferente que só uma pessoa não-binária usaria, mesmo que também lembre outros pronomes.
Masculinidade, feminilidade e neutralidade também não são as únicas características relacionadas a gênero. Podem haver pessoas que associam sua linguagem com androginidade, outerinidade, xeninidade, etc. E pessoas que só gostam de uma linguagem sem querer associar nada com ela.
Mesmo que você queira se referir a palavras como atriz, meu, avó ou poeta, que não estão usando os elementos citados nos conjuntos a/ela/a e o/ele/o, é possível dizer que estas palavras são associadas com tais conjuntos, ao invés de dizer que são palavras "no feminino" ou "masculinas" ou afins.
Também é perfeitamente possível falar que uma pessoa que usa o/ele/o está sendo maldenominada quando usam a/ela/a por conta de cissexismo e de verem a pessoa como alguém de seu gênero designado, ou que a língua portuguesa usa o/ele/o como padrão por conta dessa linguagem ser associada com homens, sem dizer que estas linguagens são sempre e por si só femininas ou masculinas.
7. Não existem identidades não-binárias que não são relacionadas com gêneros binários ou com ausência de gênero
Procure pela definição de bigênero e gênero-fluido e você vai frequentemente achar definições que agem como se apenas pessoas cujos gêneros são homem e mulher pudessem usar essas identidades. Também percebo que muitas vezes pessoas citam a possibilidade de ser demimenina e demimenino sem citar a possibilidade de ser parcialmente de um gênero que não seja binário.
Procure por listas mais simplificadas de identidades não-binárias e é provável que você não veja nada como maverique, caelgênero ou gênero-orientação. Isso pode ser por boas intenções (a pessoa quer apresentar identidades não-binárias que sejam mais comuns ou mais fáceis de aceitar para pessoas binárias), mas também pode ser por más intenções (a pessoa não acredita que outras identidades não-binárias sejam reais).
Pois bem, estou aqui para dizer que sou ume inavire lichtgênero, e que não há nada de errado com você se você é gênero-fluido entre dezenas de identidades diferentes, se identifica com um ou mais xenogêneros, é de alguma identidade complexa no espectro agênero, quer usar vários rótulos que ninguém chegou a traduzir para a língua portuguesa, não entende bem sua identidade de gênero, tem uma identidade de gênero (ou mais de uma) influenciada ou definida por suas experiências de vida, etc.
Se você quer explorar mais sobre tipos de identidades não-binárias, talvez você se interesse nas sugestões desta postagem.
8. Ou pessoas pangênero existem e têm todos os gêneros, ou não podem existir
Em sites que usam definições especulativas para identidades não-binárias, pangênero geralmente é uma identidade definida como ter todos os gêneros. Só que, bem, isso é impossível.
Existem vários gêneros definidos por experiências de vida. Como alguém poderia ser gênero-lésbico e gênero-aquileano e gênero-bi e gênero-pan e gênero-assexual e gênero-omniarromântico e gênero-cupio e gênero-apoti e gênero-abro e, bem, afins? Não tem como ter todas as orientações ao mesmo tempo.
Também seria muito difícil, ou impossível, de alguém ser bordergênero, autigênero, cavusgênero, afetugênero, gênero-neblina, gênero-OC e mais todos os outros neurogêneros. A pessoa teria que ter todas/várias neurodivergências e ter gêneros que podem ser específicos ligados a todas elas.
E em relação a culturas? Existem dezenas de identidades cobertas pelo guarda-chuva Dois Espíritos em diferentes povos nativos da América do Norte. E existem identidades exclusivas a pessoas chinesas, havaianas, judias, indianas, albanesas, egípcias, negras... é possível ter conexão a mais de uma cultura, mas é impossível ter conexões fortes o suficiente com dezenas de culturas para realmente entender o contexto de gênero em cada uma delas.
Daí também temos identidades exclusivas a pessoas de certos gêneros designados. Mesmo que uma pessoa seja judia, ela não pode ser ay'lonit e saris ao mesmo tempo, por exemplo.
Mas e então, o que são pessoas pangênero? Bem, podem ser pessoas que possuem uma quantidade enorme de gêneros, ou que sentem que possuem infinitos gêneros (dentro de sua cultura e experiência de vida, obviamente). Pessoas pangênero atualmente geralmente usam estas definições, ou definições similares. Para quem se interessa, é possível ler mais sobre isso aqui.
9. Estereótipos de gênero fazem de uma pessoa mais ou menos não-binária
Pois é, eu vejo esta atitude até em círculos não-binários.
Se uma pessoa usa a/ela/a e roupas da dita "seção feminina" e tem uma "aparência de mulher" sem se esforçar para parecer mais masculina, não significa que a pessoa não possa ser não-binária, agênero, maverique, poligênero, gênero neutro, homem não-binária, demimulher, altezenina, etc.
Se uma pessoa rejeita normas de gênero do seu gênero designado mas não é trans binária, também não significa que a pessoa precise ser não-binária.
Eu sei que há uma pressão para arranjar motivos para sua identidade ser real. Porque o cissexismo diz que você é do seu gênero designado por padrão, e precisa sair muito disso para que sua identidade possa ser levada a sério. E o exorsexismo diz que, mesmo que você não seja uma pessoa cis, você precisa ao menos ser uma pessoa binária.
Então não é à toa que existem as histórias clássicas de alguém que desde criança teve um desconforto imenso com tudo relacionado ao seu gênero designado, desde papeis de gênero até brinquedos e roupas e linguagem e nome e corpo, e que por conta disso "é óbvio" que aquela pessoa é de outro gênero. E, para a pessoa supostamente ter mais chance de ser reconhecida como não-binária, ela precisa rejeitar seu gênero designado sem preencher todos os estereótipos de uma pessoa trans binária.
Identidade de gênero é algo muito pessoal.
Algumas pessoas vão ser gênero-fluido e sempre ter a mesma linguagem, o mesmo nome e a mesma expressão de gênero. Outras pessoas gênero-fluido vão mudar essas coisas de acordo com o seu gênero do momento.
Algumas pessoas vão preencher estereótipos de um papel de gênero de homem ou de mulher e se sentir conectadas a certo gênero por isso. Outras vão preencher os mesmos estereótipos e se recusarem a dizer que são parcialmente homens, parcialmente mulheres, femininas ou masculinas por conta disso.
Algumas pessoas vão justificar seu gênero por conta do corpo que querem ter. Outras podem ter a mesma identidade de gênero sem querer/ter tal tipo de corpo.
Algumas pessoas vão só dizer que sentem que seu gênero é de tal forma. Outras dizem que não possuem nenhum sentimento interno de gênero, apenas outras indicações de qual é sua identidade de gênero.
Enfim, é importante respeitar a identidade de gênero que cada pessoa diz ter, independentemente de ser algo com uma justificativa diferente da sua identidade de gênero, e independentemente da pessoa preencher ou não certos estereótipos ou arquétipos.
10. Pessoas não-binárias não são trans. Alternativamente, todas as pessoas não-binárias são trans
No Brasil, infelizmente, pessoas precisam ser registradas como algum gênero binário ao nascimento.
Isso significa que, não importa como a criação de alguém foi "neutra", ou como o gênero de alguém é parecido com o designado, ou como alguém é intersexo, se você não se identifica como homem ou mulher, você vai ter experiências que te dão acesso ao termo trans, ou seja, de pessoas com a identidade de gênero que difere da designada.
Porém, eu entendo que podem ter pessoas gênero-fluido que passam pelo seu gênero designado com frequência e que se sentem maldenominadas pelo termo, pessoas intersexo que não se sentem bem descritas pela identidade trans, pessoas cujas identidades de gênero são aceitas dentro de suas sociedades mesmo que elas não estejam em sua certidão de nascimento, pessoas cuja identidade de gênero é próxima a seu gênero designado que não se sentem representadas pela comunidade trans, pessoas sem gênero que acham que o termo transgênero não denota bem sua ausência de gênero, entre outras, que podem não se identificar com o termo trans (ou até mesmo com o termo não-binárie).
Ou seja, sim, você que é mulher-fluxo que foi designade mulher ao nascimento pode se dizer trans, você que é intersexo e intergênero pode se dizer trans, você que é gênero-fluido e que muda entre 100% homem e 100% mulher pode se dizer trans, e você pessoa não-binária que não vai fazer transição física pode se dizer trans. Mas, novamente, vocês também podem não se dizer trans se não se sentirem confortáveis com isso.
Bem, é isso! Que outras coisas você vê pessoas não-binárias acreditando que contradiz o que outras pessoas não-binárias experienciam?
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